Inscrição de Abércio
A Inscrição de Abércio ou Epitáfio de Abércio, que data do último quartel do século II (170 - 200),[1] é alegadamente a mais antiga epígrafe cristã datada,[2] que fornece características sobre o ambiente e pensamento do século II.
Descoberta
[editar | editar código-fonte]Diversas cópias da chamada Vida de Abércio (Vita Abercii) circularam nos séculos IV e V, havendo restantes cerca de 50 manuscritos conhecidos, que registravam a inscrição quase todos em grego (havendo ainda traduções em latim, russo e armênio[3]). Conta-se que ele era bispo cristão de Hierápolis, sendo narrada, além da transcrição de seu epitáfio, a sua vida, e situada sua história por volta de 190/195 EC. Como não havia nenhuma fonte original dessa época, a hagiografia tendo sido escrita séculos depois, além de que o bispo de Hierápolis registrado por Eusébio na época não se chamava Abércio, mas Cláudio Apolinário, e a geografia da narrativa não condizia com a da cidade, supunha-se que era uma invenção pseudepígrafa.[2]
A antiga Hierápolis era considerada então o sítio próximo a Pamukkale, mas William M. Ramsay considerou que havia ao norte da Frígia outra Hierápolis (Gerápole ou Gerópolis), da Pentápole Frígia, próxima a Koçhisar.[2] Em 1882, lá ele descobriu uma inscrição grega inserida em um pilar colocado em frente à mesquita da hoje Kelendres (Karadirak).[4] A inscrição fazia parte do altar sepulcral de um certo Alexandre, filho de Antônio, e reproduzia o início e o fim do epitáfio atribuído ao bispo. No ano seguinte, 1883, após ter conhecimento da Vita Abercii e localizando a descrição das fontes termais da cidade, o próprio Ramsay encontrou perto de uma casa de banho público um mármore branco contendo dois fragmentos da verdadeira epígrafe de Abércio[5] e que fora usado como pedra tumular, pois havia nele um entalhe de láurea com laço, um motivo comum de marca lapidária; os restos indicam que a pedra era quadrada (bomós), seguindo a forma de altar greco-romana dos monumentos funerários frígios. A inscrição foi assim tida como confirmada.[6]
A inscrição de Alexandre continha "o ano 300" do período romano, ou seja, 216 EC, o que confere uma datação máxima da chamada inscrição de Abércio original; entre aqueles que a defendem, supõe-se que Alexandre teria ficado impressionado com a epígrafe de Abércio na cidade, a ponto de imitar sua introdução e desfecho.[6] Destaca-se a diferença do final da introdução, em que se consta "pelo nome de Alexandre, discípulo de Antônio, o santo pastor": "santo pastor" é associado a uma pessoa, não a forma impessoal na inscrição da Vita Abercii.[7]
A descoberta foi doada ao Papa Leão XIII em 1892, por ocasião de seu jubileu, e foi conservada na Galeria Lapidária do Museu de Latrão em Roma até 1963; hoje ela é encontrada no Museu Pio Cristão, enquanto a inscrição de Alexandre é encontrada nos Museus Arqueológicos de Istambul.[6]
Inscrição
[editar | editar código-fonte]A inscrição é preservada por cerca de um terço, mas foi originalmente gravada em três registros, em um total de 22 linhas. Foi possível reconstruir quase completamente unindo-se a epígrafe de Alexandre (para os versos 1-3 e 20-22) e os numerosos códices manuscritos que transmitiram uma vida grega de Abércio.[8]
Na inscrição, Avércio conta que teria comissionado ainda em vida aos 72 anos o seu monumento tumular. A epígrafe está escrita no grego em forma poética, com presença de métrica e aliterações.[2]
A seguir a tradução e reconstituição do texto da inscrição segundo Laurence Kant;[2] em negrito, os trechos que se encontram nos fragmentos considerados originais do altar de Abércio:[7]
1. Como cidadão de uma cidade favorita, mandei ser feito este monumento |
Interpretação
[editar | editar código-fonte]Abércio usa uma linguagem enigmática e se refere a usos típicos de sua época; as figuras em estilo greco-romano comportam várias camadas interpretativas e permitem convergência de simbologia com significados assimiláveis de diferentes maneiras pelas várias culturas da época.[2] Por exemplo, "pastor puro" pode identificar provavelmente a Cristo, mas a outros Átis, Adônis e Dioniso, ou a pastores pagãos de rituais de sacrifício.[2][7]
Aqui está uma interpretação cristã da epígrafe, que considera um conteúdo eucarístico:[9]
- Verso 1, a "cidade escolhida" poderia aludir tanto a Hierápolis quanto à Jerusalém celestial, da qual Abércio é cidadão enquanto cristão;
- Nos versos 3-6 ele se considera discípulo do Bom Pastor (também ecoa uma famosa passagem do Evangelho de João), considerado Cristo;
- Os versos 7-9 descrevem a sua viagem a Roma, onde encontrou o centro da Igreja, manifestada como uma rainha vestida de ouro e um povo, ou seja, a comunidade cristã, portando um esplêndido selo "batismal" da fé cristã;
- Os versos 10-11 descrevem as viagens feitas para o Síria e a Mesopotâmia, provavelmente para fins espirituais;
- Verso 12, o apóstolo Paulo é o companheiro espiritual de Abércio;
- Versos 12-16 conteriam algumas metáforas para indicar a Eucaristia: A fé o guiou em todos os lugares e deu-lhe o Peixe Místico como alimento - no qual a imagem de Cristo no acróstico Ichthys (Iēsoûs Christós Theoû Hyiós Sōtḗr, Jesus Cristo Filho de Deus Salvador), concebido pela casta Virgem (Maria) - na forma de vinho e pão;
- Versículos 17-19 Abércio afirma ter supervisionado pessoalmente a epígrafe e convida os fiéis a orar por ele;
- Os versos 20-22, de acordo com uma forma costumeira na epigrafia pagã, ordena que uma pena pecuniária seja paga ao tesouro de Roma e Hierápolis em caso de violação do túmulo, uma multa de 3.000 moedas de ouro, correspondente a mais de 42 libras de ouro.
A epígrafe serviria, nessa linha de interpretação, como seu testamento espiritual, em que ele resume sua experiência de fé cristã por meio de metáforas e expressões simbólicas. Os católicos passaram a defender sua existência histórica e alguns o identificaram a um Avírcio Marcelo (Avircius Marcellus) que tinha atividade na Frígia, citado por Eusébio em sua História Eclesiástica.[2][7][10]
Uma hipótese é de que a Vida de Abércio teria sido criada para explicar a característica incomum dessa tumba associada a um bispo cristão.[11] Ramsay considera que Abércio teria tido influência notável conforme a importância de seu registro em ritos eclesiásticos e pela preservação de seu nome em indivíduos locais: o bispo de Hierápolis em 451 assina como "Aberkios" no Concílio de Calcedônia; ele também registrou a existência de túmulos próximos de um diácono do século III chamado "Abirkios", filho de Porfírio, junto a sua esposa; e de Aurélio Doroteu (Aurelius Dorotheos), filho de Abirkios, datando de entre 330 e 350.[12][11]
Há outros que viram na inscrição elementos de paganismo ou sincretismo, e houve debate se o autor era pagão ou cristão. Acadêmicos protestantes contestaram-na pela influência que a descoberta conferia à Igreja romana: em 1894, Gerhard Ficker, apoiado por Otto Hirschfeld, afirmou que o autor seria um sacerdote de Cibele e Átis, que viajara a Roma levando uma pedra sagrada da deusa. Em 1895, Adolf von Harnack propôs que o autor faria parte de um sincretismo pagão-cristão e alegou ter traçado a figura da "rainha de sandália dourada" à mitologia gnóstica. Para Albrecht Dieterich, em 1896, o autor era um sacerdote de Átis e o motivo teria sido de visita ao casamento de Elagábalo como um delegado frígio.[2][7][10]
Foi sugerida também a presença ainda de um estrato do judaísmo, devido às palavras "grande" e "puro" ligadas ao peixe, que são adjetivos associados ao Leviatã na terminologia rabínica, e ao registro de tradições do banquete messiânico, em que comer-se-ia a carne do Leviatã na era da vinda do Messias; isso poderia ter sido uma influência da simbolização do Cristo como Ichthys ("o Peixe").[13]
Markus Vinzent, por evidência epigráfica, considera que a inscrição teria sido criada pelo autor da Vita Abercii, que combinou as inscrições dos dois monumentos diferentes próximos de Hierópolis, o de Alexandre e o outro de autor anônimo, e que Abércio seria um nome fictício. A inscrição dos fragmentos tumulares encontrados forma uma caixa quadrada e eles não forneceriam espaço para o texto considerado completo (a partir da descrição do vinho), além de as diferenças entre termos e temas ter sido ignorada pelos interesses da historiografia em defender a historicidade da alegada inscrição. Ele defende que a narrativa servia para coordenar o papel tradicional do bispado na região e como uma hagiografia de função apostolizante.[7]
Referências
- ↑ Guarducci 1978, p. 378.
- ↑ a b c d e f g h i Kant, Laurence H. (fevereiro de 2001). "Earliest Christian Inscription: Bishop Avercius's Last Words Document Emergence of the Church". Bible Review 17.
- ↑ «Aberkios». The Eerdmans Encyclopedia of Early Christian Art and Archaeology (em inglês). [S.l.]: Wm. B. Eerdmans Publishing. 2017
- ↑ Inscrição publicada em Ramsay 1882, pp. 518–520
- ↑ Publicada em Ramsay 1883, pp. 424–427
- ↑ a b c Guarducci 1978, p. 380.
- ↑ a b c d e f Vinzent, Markus (14 de março de 2019). «'Abercius': Pious Fraud, Now and Then?». Writing the History of Early Christianity: From Reception to Retrospection (em inglês). [S.l.]: Cambridge University Press
- ↑ Guarducci 1978, p. 378–380.
- ↑ Baseada em Guarducci 1978, pp. 382–386. Para algumas diferenças de interpretação dos versos, consulte Kearsley 1992, pp. 179–181.
- ↑ a b Herbermann, Charles (ed.) (1913). "Inscription of Abercius". Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton Company.
- ↑ a b McKechnie, Paul (agosto de 2019). «Aberkios and the Vita Abercii». Christianizing Asia Minor: Conversion, Communities, and Social Change in the Pre-Constantinian Era (em inglês). [S.l.]: Cambridge University Press
- ↑ Ramsay, William M. (1888). «Early Christian Monuments in Phrygia: A Study in the Early History of the Church» (PDF). Expositor. 3 (8)
- ↑ Kant, Laurence Harold (1993). The Interpretation of Religious Symbols in the Graeco-Roman World: A Case Study of Early Christian Fish Symbolism. Universidade de Yale.
Bibliografia
[editar | editar código-fonte]- William M. Ramsay (1882). «Les trois villes phrygiennes Brouzos, Hiéropolis et Otrous». Bulletin de Correspondance Hellénique (em francês). 6: 503-520
- W.M. Ramsay (1883). «The cities and bishropics of Phrygia». The Journal of Hellenic Studies (em inglês). 4: 371-436
- Margherita Guarducci (1978). Epigrafia greca. 4. [S.l.]: Istituto poligrafico dello stato
- R.A. Kearsley (1992). «The epitaph of Aberkios: the earliest Christian inscription?». In: S.R. Llewelyn. New documents illustrating early Christianity (em inglês). 6. [S.l.]: Macquarie University
Ligações externas
[editar | editar código-fonte]- G. Bareille (1909). «Abercius (Inscription d')». Dictionnaire de théologie catholique (em francês). 1. [S.l.]: Letouzey et Anè
- Peter Kirby. «Inscription of Abercius» (em inglês)