Questão do Ambriz

A Questão do Ambriz foi um incidente diplomático ocorrido entre 1846 e 1882, entre Portugal e o Reino Unido, sobre o limite norte dos territórios sujeitos ao domínio português na costa ocidental africana.

Aquando da assinatura da Convenção de 1817, o terceiro de três acordos diplomáticos assinados entre Portugal e o Reino Unido envolvendo o tráfico de escravos, ao contrário do que sucedera nos dois primeiros tratados, os diplomatas de ambos as nações fixaram matematicamente, e com uma grande precisão geográfica, os limites do regime de excepção para o tráfico de escravos atribuído a Portugal, declarando que os territórios em que os súbditos portugueses continuariam a ter liberdade de tráfico, pela única razão — de acordo com o disposto nos dois primeiros tratados — de serem pertença da Coroa Portuguesa, eram:

  1. Todos os efectivamente possuídos por essa coroa entre o paralelo 18º e o 8º de latitude Sul;
  2. Aqueles sobre os quais Portugal declarara que reservava os seus direitos, chamados Molembo e Cabinda, "na costa oriental africana", desde o paralelo 5º 12', ao paralelo 8º latitude Sul;[1]

Esta determinação dos diplomatas de 1817, pretensamente definitiva, geográfica e precisa, acabou sendo extremamente desastrosa. Em primeiro lugar, porque se lançaram na costa oriental africana os territórios ocidentais de Molembo e Cabinda, erro só corrigido dois anos depois, com a modesta qualificação de um "erro verbal" — a verbal mistake — pela Convenção Adicional de 30 de Abril de 1819. Em segundo lugar porque, ao contrário das inofensivas consequências da errónea localização geográfica de Molembo e Cabinda, o preço a pagar pela fixação dos paralelos geográficos como limites dos territórios referidos, foi extraordinariamente alto.[1]

A norte, onde os "domínios de Portugal", até aí se estendiam até ao Cabo de Lopo Gonçalves, a 0º 36' de latitude Sul — o "cabo Lopez" da cartas britânicas —, e que a convenção de Madrid de 1786 havia acolhido no princípio fundamental que lhe deu origem e que teve por fim definir:

Retraíram-se até ao Chiluango, no paralelo 5º 12'. Portugal perdeu, desta maneira, 5º de costa. Embora se pudesse argumentar que os tratados anteriores já fixavam a Costa de Molembo como limite extremo, esses mesmos tratados referiam tão somente os territórios de Molembo e Cabinda, sendo que este último termina na embocadura do rio Zaire, na ponta do Diabo — a Red Point das cartas britânicas, localizada a 5º 44’ de latitude Sul —, ou quando muito na Ponta da Banana, a 6º 2’de latitude Sul. A Convenção de 1817, no entanto, situava esse mesmo limite de forma absurda a 8º de latitude Sul, além mesmo do Ambriz, alargando assim a área dos territórios sobre os quais Portugal "reservava direitos" ou, o que é o mesmo, reduzindo aqueles que até então eram positivamente reconhecidos como "domínios efectivos" da Coroa Portuguesa, retirando-lhe nem mais nem menos que toda a região compreendida entre o paralelo 8º e a margem direita do rio Zaire, inclusive. Acaso este erro não tivesse sido cometido, provavelmente nunca se teria levantado a chamada Questão do Ambriz, nem tampouco a que se lhe seguiu, a não menos famosa Questão do Zaire, os direitos reservados continuariam a abranger apenas os territórios de Molembo e Cabinda. Para o sul, incluindo o rio Zaire, haveria somente o "domínio efectivo" de Portugal, claramente afirmado e nunca posto em dúvida, em linha com os tratados de 1810 e de 1815, e perfeitamente de acordo com a convenção de Madrid de 1786.[1]

O paradoxo do Ambriz

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Apesar de tudo, somente quase três décadas após a assinatura da Convenção de 1817, em 1846, se verificaram as funestas consequências deste tratado. Nesse ano, e a propósito da apreensão e do julgamento regular de um navio negreiro do Brasil, apresado ao norte do Ambriz pelas autoridades portuguesas, o representante britânico em Lisboa observava ao Governo português, em nota datada de 24 de Novembro de 1846, que o seu governo somente reconhecia a soberania portuguesa do paralelo 8º para o sul, de acordo com o texto da convenção de 1817. Dali para o norte começava uma região que, apesar de Portugal ter reservado direitos sobre a mesma, o Reino Unido, na opinião do diplomata britânico, não os reconhecia. Alguns dias depois, e na sequência do julgamento, por um tribunal português, do caso de um navio português apresado pelas autoridades portuguesas na latitude 7º 36´ Sul, é remetida pelo Governo britânico outra nota, desta vez pelo próprio Lorde Palmerston, ratificando e reproduzindo a mesma doutrina da primeira, e comunicando o receio de alguns membros da comissão mista luso-britânica, criada pelo tratado de 3 de Julho de 1842 entre Portugal e a Reino Unido, para julgar as presas feitas por crime de tráfico,[2] de que Portugal fizesse valer (forced no original) os seus direitos de soberania entre os paralelos 5º 12´ e 8º Sul, prejudicando assim os traficantes britânicos que negociavam livremente naquela parte da costa africana. Na mesma nota, Lorde Palmerston paradoxalmente afirma expressamente que, por um lado, Molembo era o território no extremo setentrional da soberania reservada de Portugal, mas não reconhecida efectivamente pelo Reino Unido; e que o Ambriz era o ponto extremo daquele lado do território sobre o qual o Reino Unido reconhecia essa soberania. O paradoxo resulta do facto de que o Ambriz, estando localizado a 7º 52' Sul, está, portanto, ao norte do paralelo 8º, pelo que aquele reconhecimento colidia com as referidas limitações fixadas pelo tratado de 1817, tornando irrelevantes, assim, as correspondentes alegações britânicas.[1]

Somente a 9 de Novembro de 1850 o embaixador britânico em Lisboa explicou ao Governo português o paradoxo contido na nota de Lorde Palmerston, alegando que este só no ano seguinte, em 1847, soubera, pelos comissários britânicos em Luanda, que o Ambriz de facto ficava ao norte do paralelo 8º. À estranheza causada pela demora na explicação, soma-se o facto de que à data abundavam já os mapas britânicos, até oficiais, que determinavam a posição exacta do Ambriz. De qualquer forma, mesmo reconhecendo o equívoco, o Governo britânico abdicou da contestação ao direito português de ocupação do Ambriz, argumentando que um erro geográfico não prevaleceria sobre o texto e a interpretação dos tratados.

Fundamentação dos direitos portugueses

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A esta sequência de controvérsias acresce a nota enviada a 26 de Novembro de 1853, que, repetindo as declarações anteriores, acrescenta ainda que é certo que "Portugal adquiriu no século XV" o direito à soberania da região compreendida entre os paralelos 5º 12' e 8º Sul, mas que esse direito se achava então prejudicado pelo abandono, suffered to lapse, uma vez que não houvera ocupação desses territórios.[3] Em reacção, o governo português, verificando que efectivamente não havia nesse lugar autoridades permanentes que afirmassem a sua soberania, e se opusessem ao tráfico de escravos, limitando-se o policiamento às visitas de cruzadores, resolveu pôr termo à Questão do Ambriz, através da sua ocupação efectiva por uma expedição militar chefiada por José Baptista de Andrade, em 6 de Junho de 1855, ocupação de resto já projectada de há muito, logo determinada pelo Governo português em 20 de Janeiro daquele ano. Uma vez resolvida a questão da ocupação, Portugal resolveu mantê-la fossem quais fossem as consequências, o que conseguiu com sucesso.[1]

O fundamento dos direitos alegados pelos portugueses, assentava:

  1. Na prioridade do descobrimento;
  2. Na posse conservada durante séculos;
  3. Na introdução da civilização pelo cristianismo;
  4. Na conquista pelas armas;
  5. No reconhecimento do seu domínio pelos indígenas.[4]

O Tratado de 1882

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Desde que o Governo britânico havia insinuado, pela nota de 26 de Novembro de 1853, que Portugal "havia deixado cair o direito que pela prioridade da descoberta tinha a essa parte da costa porque a não havia ocupado", o Governo português decidiu "fazer uma ocupação efectiva que permitisse acabar com o tráfico da escravatura, proteger e promover o comércio lícito e exercer o seu direito de soberania"[5] O Reino Unido, no entanto, não desistiu das suas pretensões, encetando uma oposição tenaz a que Portugal estendesse a ocupação para o norte, como era então seu propósito. Ameaçando recorrer ao uso da força, o Governo britânico dirigiu em 1860 ao Embaixador de Portugal em Londres uma nota nos seguintes termos:

Confrontado com a ameaça britânica, Portugal teve de se submeter, e, para evitar o agravamento do conflito, desistiu da ocupação de Cabinda, tentada em 1875,[6] limitando-se a, periodicamente, lembrar ao Governo britânico o fundamento dos seus direitos e propor uma solução do caso em aberto.[7][1]

Ao aperceber-se da ameaça que poderiam representar as explorações do conde Pierre Savorgnan de Brazza, um italiano nacionalizado francês, ao serviço da França, assim como a criação em Bruxelas do Comité de Estudos no Alto-Congo, Portugal advertiu o Reino Unido do perigo que ela própria corria em África, lamentando que persistisse a desconfiança e a rivalidade num momento em que se tornava absolutamente necessária "uma política de cooperação de parte das duas potências", e pedindo ao Reino Unido que não se opusesse à ocupação da região do Zaire. Portugal acrescentava ainda que de entre as quarenta e nove feitorias aí estabelecidas, vinte e seis eram portuguesas.[8] Confrontada com a acção da França e da Bélgica no Congo, o Reino Unido valorizou a advertência e o pedido de Portugal, prontificando-se em Dezembro de 1882 a negociar um tratado em que se pusesse termo às antigas disputas quanto à região contestada. Os governos de ambas as nações entraram em negociações nesse sentido, que se estenderam por mais de um ano. Uma vez recusada a proposta britânica que propunha o Porto da Lenha como limite no Zaire, e feitas algumas concessões em Moçambique, foi finalmente assinado o Tratado de 26 de Fevereiro de 1884, no qual Portugal ganhava finalmente a "Questão do Ambriz", vencendo os lobbies britânicos, hostis ao domínio português numa costa que funcionava como pulmão da bacia do Zaire. O Reino Unido reconheceu então a soberania portuguesa em toda a costa compreendida entre os paralelos de 5º 12’ e 8º de latitude Sul — desde Cabinda e Molembo até ao Ambriz — fixando-se Nóqui como limite no rio Zaire, e passando a fronteira interior ocidental a coincidir com os limites das actuais possessões das tribos da costa e marginais.[9]

Referências

  1. a b c d e f Marques de Oliveira (30 de Novembro de 2009). «Fronteiras de Angola e a evolução histórica». Jornal de Angola 
  2. Marcelo Caetano, ob. cit., p. 59; sobre este tratado, e o de Londres de 20 de dezembro de 1841, promovido pelo Reino Unido, e celebrado entre os cinco grandes do tempo (Áustria, Prússia, Rússia, Reino Unido e França), para avaliação do comércio de escravos, veja-se, Gama Lobo, “Princípios de Direito Internacional”, vol. I p.108, e vol. II p. 242
  3. Luciano Cordeiro, “A Questão do Zaire”, in Revista de Estudos Livres - I 1883 p. 82-262
  4. Visconde de Santarém, “Demonstração dos direitos que tem a coroa de Portugal sobre os territórios situados na costa ocidental de África entre o 5º e 8º de latitude meridional e por conseguinte aos territórios de Molembo, Cabinda, Zaire e Ambriz.”, Lisboa, 1885.
  5. Visconde de Sá da Bandeira, “Faits et considérations relatifs aux droits du Portugal sur les territoires de Molembo, de Cabinda et d’Ambriz et autres lieux de la côte occidentale d’Afrique située entre le 5º degré 12’ minutes et le 8º degré de latitude australe”, Lisbonne, Imp. Nationale,1855, p. 43 sgtes.
  6. Marquês do Lavradio, “A abolição da escravatura e a ocupação do Ambriz”, Lisboa, Livraria Bertrand 1934, p. 97 e segtes.
  7. Veja-se o Memorando do Ministro dos Negócios Estrangeiros ao Ministro de Portugal em Londres, de 8 de Novembro de 1882, no Volume dos Negócios Externos, 1884 (Questão do Zaire), p.5
  8. Sobre os direitos de Portugal, veja-se Martens Ferrão, “A questão portuguesa do Congo perante o direito público da Europa.”, Imprensa Nacional, Lisboa 1884; Negócios Externos 1885 (Questão do Zaire, II), p. 145.
  9. O tratado está publicado in Negócios Externos 1884, (Questão do Zaire), p.185; José de Almada, “Tratados aplicáveis ao Ultramar, coligidos e anotados por...,” VI (apêndice), Lisboa, Agência-Geral das Colónias, 1943, p. 17 e segtes.